terça-feira, 24 de março de 2015

Morta pelos pés


A levavam aonde quer que quisesse, não havia um desejo em seu coração o qual não conhecessem, e antes mesmo que pudesse pedir, descobria que seus pés, magicamente, já mostravam o caminho. Nas pontas dos dedos era acordada por gotas de orvalho, línguas ásperas e pêlos macios a roçarem seus calcanhares.
Encontrou e despediu-se de muito amores, de lugares de sonho, mas um dia percebeu que já não desejava ser levada a lugar nenhum. A idade não lhe trazia mais mistérios ao despertar, não se perguntava onde acabaria desta vez, a magia se fora, e passou a fantasiar sobre o silêncio. Os caminhos a seguir, eram muito poucos agora.
Numa manhã, pela primeira vez em anos, foi acordada pela grama morna em sua pele, seus pés guiavam-na, abriu os olhos para encontrar a paisagem de devaneios que cresciam em si, descobriu que afinal ainda havia um último destino a visitar, sorriu.
Levaram-na até a beira do lago, e como se pedissem sua permissão iniciaram a lenta caminhada.
Um passo, e sentiu os dedos mergulharem na água.
Mais um, brincou com a lama do rio
Três, arrepiou-se com os peixes em suas pernas
Quatro, sentiu-se uma criança ao ver o vestido tornar-se um grande balão, quase gargalhou
Mais um passo, e seus cabelos eram cascatas à cima de seus olhos

Estando completamente submersa, sentiu os pés prenderam-se ao fundo e neste momento viu a luz do sol fracionar-se em um arco-íris, as nuvens e o céu pareciam segredar-lhe o infinito. O silêncio era mais alto do que sua pulsação, podia senti-lo e já não trazia o escuro. Sentiu pela última vez o peso de seu corpo, deixou-se envolver pela imensidão à sua volta, afundou ainda mais os dedos na areia, não teve medo, estava exatamente onde seu coração desejava, com a eternidade a cima de seus olhos, que jamais se fechariam.

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