O cofre
Espirais de fumaça dançavam e enroscavam-se pelo ar da cozinha, há cada uns tantos
segundos, um sopro às dissipava pelo cômodo. Seus óculos embaçavam, mas não se incomodava,
continuava a assoprar o vapor para longe. Enquanto brincava com aquele resto de café amargo
Catarina encarava o velho trambolho enferrujado na parede.
-Merdinha inútil. - Mais uma onda de vapor quebrou-se pelo ar.
A posição daquela velharia sempre a incomodara, fora instalada no meio da parede da sala,
de frente para a cozinha, uma grande porta de ferro, tão antiga quanto o tempo. No começo deveria
haver um quadro para tampá-lo, mas este deve ter sumido com o resto das coisas. Roubado,
penhorado, queimado, quem sabia? No fim, ficaram só ele, e ela.
Desde os tempos da construção da casa ele já estava ali, podia-se dizer que era o seu
coração. Todos os donos pareciam ter uma fascinação por sua áurea, lembrava-se de ver a avó
rondando-o cedo pela manhã, mas ela por aquela coisa, não sentia nada além de curiosidade e
desprezo. Sentimentos que só aumentaram desde que voltara a se refugiar ali.
Já fariam uns vinte anos talvez? Os dias pareciam tão contínuos que já não lembrava quando
os vivos tornaram-se inconvenientes, e a lembrança dos mortos passaram a ser sua melhor
companhia. Sentia-se muito mais como um fantasma, ao qual já não cabiam as funções de um ser
orgânico.
– Sorriu desdenhosa
– Mas que pensamento mais clichê. Uma sombra em uma casa fantasma. - A fumaça se
partia novamente.
Desde o incêndio, toda aquela casa era um sepulcro, só restaram memórias, preferia que
estas tivessem queimado junto com o resto. Inconscientemente deslizou os dedos pela pele rugosa
dos ombros ao pescoço enquanto encarava a porta de ferro, muito mais escondia-se sob o tecido.
A lembrança a acompanhava todos os dias, refletia-se no espelho, naquela maldita parede.
Desde muito pequena vira seu pai observando fascinado o interior do cofre, e apesar de seu
tamanho e posição nada discretos, nunca conseguira ver o que havia lá dentro, só sabia, que valia,
de todas as formas, muito mais do que ela. No dia em que a sala explodira em chamas, não se
preocupou em subir as escadas e procurar pela menina, preferiu atirar-se em meio ao fogo e salvar o
que quer que existisse naquela porcaria.
As unhas afundaram-se na pele dos ombros e deslizaram até a gola da blusa, puxando-a com
força como se quisesse rasgá-la, marcas finas deixavam um rastro quase imperceptível em meio as
tantas disformidades que já existiam, destacavam-se apenas pelo vermelho que começava a brotar.
Deu um suspiro de impaciência, passou a mão pelos cabelos e começou a bater a caneca na
mesa. Com um grito arremessou-a pela sala, e a viu se desfazer em pedacinhos na porta de ferro.
-O que você tem? Que merda é essa tão importante? - Berrou enquanto batia os pés no
chão incessantemente. -O queeeee? - Tomada de raiva, lançou-se conta a porta do cofre, girou a
combinação para todos os lados, investiu com todas as forças sobre a trava, socou-a até os punhos
arderem. Nada. As lágrimas de raiva transformaram-se em frustração, e depois em cansaço. Já não
era a primeira vez.
Subiu as escadas pensando em todos os jeitos que já tentara arrombar aquela merda e em
todas as fantasias que criara sobre o que haveria ali dentro. Jogou-se na cama.
-Antes de eu morrer. Antes de eu morrer. - Sussurrou para si mesma.
O tempo já não habitava aquele lugar, suspendeu-se em uma eternidade que continuou a
acompanhar os monótonos dias de Catarina.
Espirais de fumaça dançam e enroscam-se pelo ar da cozinha.
-Merdinha inútil.
Cacos explodem conta a parede.
Espirais de fumaça dançam e enroscam-se pelo ar da cozinha.
Um dia bom.
Ignore.
Espirais de fumaça dançavam e enroscavam-se pelo ar da cozinha, deste lado da mesa, ela
sorria, gargalhava para ser mais preciso. Através da onda de vapor que se quebrava lá estava ele,
exposto e gigante como sempre, com todos seus segredos abertos para ela.
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