quinta-feira, 26 de março de 2015

Morta pelos pés

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Morta pelos pés

Dois velhos estavam sentados juntos em barris de vinho. Em uma casa tão velha quanto eles,
coberta de Heras e outras trepadeiras.Era um lugar bucólico, onde cabras eram mais numerosas que
pessoas e pareciam as vezes planejar um motim, segundo alguns outros velhos desconfiados que
enchiam seus quintais de feno e armadilhas para ursos. Sobre suas cabeças uma manhã rosada
infestava a tarde de maus presságios como toda boa noticia parece trazer o princípio de uma
hecatombe.
Estes dois senhores, um baixinho e atarracado e outro fino e esticado como puxa-puxa de melaço,
estavam de vigília segurando suas espingardas caso as cabras resolvessem realmente dar início a
suposta revolta.
Ao menos, ambos concordavam que o tempo passaria mais rápido se algum causo ou "conversa de
velho" o enfastiasse. Pois o Tempo detesta conversas interessantes, de um modo um tanto quanto
excêntrico concêntrico, pois concêntrico já que não deixava de ser o centro da questão. Era como se
ele tivesse uma simpatia pelo Tédio e gostasse de sentar junto deste para lhe fazer companhia. Já
que este sempre fora o evitado, por mais teimoso que fosse.
Então, ambos os velhos, para que o tempo passasse logo, resolveram começar uma conversa de
comum acordo.
O atarracado resolveu tomar a iniciativa desta atividade. Cochando seu queixo enrugado, foi
procurando alguma coisa interessante guardada em algum lugar dos últimos dias, até que lhe veio a
tona a memória de algo que lhe havia angustiado nos últimos meses. ”Acho que meus pés já não
gostam tanto de mim.” Esticado o responde enfastiado “Como assim? Tens cuidado bem deles?”
Atarracado olhou para aquela massa de calos que se chamava de pé. “ Deveras, costumo manter eles
na agua fria para acalmá-los né? Mas acho que isso não é um tratamento muito humano. Apesar de
vez em quando massageá-los, acho que existe um certo rancor de meus tempos de juventude.” A
imagem do tratamento desumano de hospitais psiquiátricos que colocavam seus pacientes sob a
imersão na água fria bruxuleou sobre os dois velhinhos para depois ir embora no espaço e tempo.
Em Esticado a memória imergiu dentro do pote da consciência, começando a se relembrar do
tratamento desumano que ele legava a certas partes dele. “Entendo, as vezes algumas partes do
corpo costumam ser rancorosas. Meu rim que o diga, mas ele nunca planejou algo pra mim, só umas
pontadas de vez em quando, mas é uma boa alma.”
Atarracado esticou seu corpo para sussurrar a Esticado num tom de confidencialidade perigosa.
“Eu sei, mas veja Sr. Esticado lembra do João Semférias?””Atarracado, me lembro muito bem.
Ele teve um problema com a mão dele, que começou a contrariá-lo em tudo que era coisa até o
ponto em que eles tiveram de se separar; agora ele usa um gancho no lugar dela. Aquilo sim foi um
desentendimento. Mas não me lembro a causa.” A resposta veio como uma carta na manga.
“Ele não tinha férias, eu acho, qualquer mão ficaria descontente trabalhando sem férias como
açougueiro.”
Algumas cabras começaram a aparecer no loca, lentamente, quatro cabras sentadas de costas aos
velhinhos. O Sr. Esticado começou a se focar mais nas cabras, juntando suas sobrancelhas com tanta
força que parecia duas taturanas exitando um beijo. “E agora que ele se aposentou as cabras
tomaram conta do lugar, acho que precisamos de outro açougueiro para nos tirar dessa.” Murmurou,
pensando em morte.
Ao ouvir isso, atarracado segurou sua espingarda de cano cerrado numa pose digna de qualquer
pessoa que ansiava parecer heroico. “Hoje em dia, Atarracado (disse Sr. Esticado tentando ignorar a
pose pífia do Sr. Atarracado) o pessoal de fora tem usado máquinas, maquinas não sabem ser
sorrateiras nem ardilosas como um bom açougueiro, vai ser difícil, talvez algum auto didata.”
E como uma criança sendo impedida pelos pais...”Eu poderia ir até a cidade, mas acho que com
estes meus pés não seria uma boa idéia.”
“Mas Atarracado o que eles tem feito?” Um jubilo de satisfação avermelhou-se na cara de atarraco
com a volta ao antigo foco da conversa. “Nada, por enquanto, são apenas pés, mas a noite quando
durmo de barriga pra cima costumo olhar para eles e eles olham para mim como se estivessem
conspirando algo. Sabe? A noite toda, eles ali me encarando, sem fazerem nada, mas me encarando
de uma forma ameaçadora.”
Mais cabras tinham se juntado, esticado tentava descobrir qual era a líder. Agora estavam em semi
círculos virados de costas aos dois velhinhos. Sr. Esticado, com as sobrancelhas já num beijo de
cinema, tentava nervosamente descobrir qual era a líder naquela situação.
“Acho que eles não tentaram nada até agora porque não tem polegares.” Disse Sr. Atarracado
balançando os dedos secos e gordinhos dos pés, com as alpargatas se sentindo desprotegidas,
esmerando nervosamente voltarem à segurança de estarem calçadas, e não acabarem esquecidas
como aquele velho costumava fazer com elas. “Porque eles simplesmente não tropeçam?” Surgiu
essa expressão por simples mecanismo de piloto automático, as cabras cobriam toda aquela mente
no momento, assim como aquela cena. “Talvez porque se eu cai-se, quem realmente iria me matar
seria a cabeça, as costas, sei lá o que cai-se primeiro. Acho eu que as outras partes não concordam
com a idéia.”
A líder era uma cabra grande, não grande de altura, mas uma cabra corpulenta que possivelmente
fazia disso uma forma de impor-se sobre as demais, conseguindo assim mais feno saqueado,
criando uma reação de cadeia, cabra cada vez mais forte sobre outras cabras cada vez mais magras
tendo assim as cabras fortes mais poder e controle sobre o feno. “Faz sentido.” Disse por fim o Sr.
Esticado, preparando a espingarda. Sem saber se a sua própria resposta era para os pés ou para sua
teoria sociológica sobre as relações de poder entre as cabras.
“Mas meu medo é que talvez em algum momento eles tenham alguma idéia. Sei lá, vai saber o que
se passa na mente desses dois.” No contexto geral aquela frase soava como uma menina brincando
com um algodão doce entre trincheiras na primeira grande guerra.
“Eu não me preocuparia tanto se o complô seja apenas dos dois, se caso a bacia se envolve-se, ou a
espinha, você sim estaria encrencado.” E esticado não sabia se ele realmente estava falando por si
mesmo ou seu consciente relegou a conversa ao seu inconsciente enquanto seu foco ficava no
aglomerado crescente de cabras que o observava. Talvez o inconsciente ciente daquela situação
soube da sensibilidade do futuro de sua existência e resolveu trabalhar de maneira mais consciente,
mesmo que, para ambas a parte desse rolo mental, não faça nenhum sentido.
“Sim, mas lembra a Dona Dúctilde?” E as vezes é bom voltar ao foco neste conto. “Ela era bastante
flexível, não sei se foram os pés, acho que ela teve problemas com as pernas também. E as pernas
tinham muitos motivos para tal, aquela mulher vivia de carregar aquelas sextas de roupa...” Eeeeee
o atarraco o interrompe, disse o narrador como se estivesse narrando um jogo de golfe violento.
Porém voltemos ao Atarracado. “É isso que eu temo, ser pisoteado enquanto durmo. Como eu iria
me defender? Se eu gritasse que meus pés estão me matando pensariam que seria só um
descontentamento deles provocando câimbras ou calos.”
“É..” A cabra chefe estava agora mais a vista que as demais, um bom tiro e dispersaria o bando, um
mal tiro poderia colocar em risco os dois velhos. Espera-se, que elas ainda não saibam como uma
espingarda de caça funciona... “Esticado?” Um grunhido vem da boca de Esticado, que neste
momento está mirando com a espingarda. “O tempo ainda está aqui né? Esse papo tá meio
entediante.”
“Atarracado, (na realidade, o tempo estava tenso, e é aqueles momentos em que ele está com a cara
grudada na sua, segurando um explosivo grudado ao corpo com um sorriso cínico e de prazer
enquanto diz, “Heeein? Heeein? Heeeeein?”), bem que eu não sou bom com conversas.
“Hum… Sabia que eu e a Dona Ductilde tivemos um caso?”
“Nossa, isso eu não sabia não! Faz muito tempo?” Sr. Esticado se perguntava como Atarracado
conseguia ignorar aquilo tudo perdido em seus pensamentos, mas não... Não diria do cerco das
cabras, ele seria o o herói da aldeia, ao menos desta vez ou ao menos para si.
“Bem antes dela ser morta pelos pés dela.”
“Hum… Fale mais, talvez assim o tempo resolva ir embora.”
“Mas espera, Esticado, como você sabe Dona Ductilde era bastante elástica.” Nisso sim o tempo
estava realmente se cansando, tenso e irritado, queria era explodir tudo para ir embora.
“Olha, agora tenho certeza que o tempo ira passar rápido...
Apertou o gatilho da espingarda com um sorriso. Acertou a ovelha chefão com um tiro certeiro. As
ovelhas ao verem a sua líder morta dispararam, possivelmente não demonstrando lealdade à uma
líder tirânica. Das moitas e de qualquer lugar onde tivesse sombra, cabras de pelo marrom escuro ou
negro saiam correndo enquanto outras cabras que estavam nos semi-círculos se atropelavam para
sair.
Os taturanas na testa do Sr. Esticado pararam de se beijar e se curvaram numa expressão de reflexão
sombria. “Sim... Sim... Elas ainda não tem medo da espingarda...”
Atarracado, meio nervoso, olhou para esticado com uma expressão terror nos olhos. “Esticado, não
diga, foi você?”
“Eu o quê Atarracado?”
“Não sei... Essa cara, essa expressão sombria. Fizeste algo contra a senhora Dúctilde?”
“Mas que diabo! Atarracado, as ovelhas! As ovelhas! Atarracado...”
"Que ovelhas?"
“Que ovelhas, não... Ah diacho as cabras! As cabras! Atarracado! Sustentar um avoado destes, é por isso que seus pés querem te matar Atarracado!”

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