“Morto, pelos pés”--Disse seu subordinado, o novo, filho daquele padeiro. O garoto normalmente limitava-se a falar o óbvio, mas o Chefe gostava disso; deixava-o calmo, por algum motivo. Óbvio era; os pés estavam escuros, enegrecidos, só eles aparecendo na beirada do minúsculo mas imensamente malcheiroso lago no coração do pântano.
“O resto do corpo está realmente aí?”--Perguntou o Chefe, baixo, franzindo o cenho. Mais alguns capangas o cercavam, a maioria com as armas nas mãos. Foram as palavras baterem em seus ouvidos eles já deixaram as armas nos coldres e começaram a puxar. O fedor do resto do corpo rivalizava com o pântano.
“Alguém amarrou os pés bem demais”--Apontou a Vice, cutucando o corpo com uma caneta--”Os pés quase caíram, pelo que parece. O resto é aquela coisa. Três tiros, e que o pântano engolisse o corpo.”
O cadáver já estava frio há muito. Nu, o sangue já seco formava manchas entre os buracos que tinha no peito, tudo regado pelo marrom podre do charco. Não fosse o enorme nariz do homem, nunca teria o reconhecido.
“Pena.”--Disse a Vice, jogando a caneta no pântano e sacando um cigarro do terno--”Era um bom homem. Fazia bem seu trabalho.”
“Não bem o suficiente”--Disse o Chefe, puxando um charuto meio fumado do estojo que guardava no bolso. Um segundo depois um dos capangas de mão limpa foi até ele com um isqueiro--”Morreu.”
“Não bem o suficiente”--Disse o Chefe, puxando um charuto meio fumado do estojo que guardava no bolso. Um segundo depois um dos capangas de mão limpa foi até ele com um isqueiro--”Morreu.”
Havia muito a descobrir ali, era certo, mas o Chefe estava sem paciência. Nenhum deles usava botas, então, além de ter arruinado os sapatos, a água suja já começava a provocar a coceira irritante. Nem ele nem seus homens precisavam aguentar aquele estorvo. O Chefe já sabia tudo que precisava saber.
“Vamos. Temos negócios nas docas.”--Sabia que nem precisava perguntar. O carro sempre continha uma boa quantidade de coisas, entre elas sapatos e meias novas. Se a Vice não deixasse tudo no lugar, não seria a Vice.
Talvez isso não fosse inteiramente verdade, não tanto quanto o Chefe gostaria. Gostava da Vice. Lembrou-se de como a encontrou no submundo, pequenina, com medo, dançando com aqueles minúsculos e perfeitos pés de menina. Talvez estivesse ficando velho e emotivo, já naquela época. Desde então sentia-se um tanto menos implacável, e, pior, gostava disso.
“Quanto tempo ele ficou desaparecido?”--Perguntou o Chefe, já com os sapatos novos. Os pés estavam vermelhos da coceira. Quando chegasse em casa sabia que estaria muito pior, mas não podia mostrar isso aos seus homens. Podia trazer perguntas. Aquele tipo de alergia era conhecido como efeito colateral do trabalho nos pés de feijão, coisa de status baixo; até mesmo entre os seus homens, só um tinha condição semelhante.
“Dois dias. Difícil acreditar que o corpo já tenha chegado naquele estado... Mando os rapazes tirarem ele dali?”--Perguntou a Vice, abrindo a porta, e depois correndo para sentar-se ao volante do maior e mais caro dos automóveis pretos que estavam estacionados na borda do pântano. Já vestia saltos novos, escondendo aqueles belos pés, e caminhava com elegância e eficiência. O Chefe tornara-a dura, severa, capaz, mas não menos bela.
“Não.”--Disse o Chefe, servindo-se do uísque que sempre ficava no carro--”Para as Docas. Steve não veio aqui, suponho?”
“Não.”--Disse a Vice, arrancando, postando-se entre os outros três carros--”Ele foi um dos únicos. Deve estar já nas docas, esperando por nós.”
“Não.”--Disse a Vice, arrancando, postando-se entre os outros três carros--”Ele foi um dos únicos. Deve estar já nas docas, esperando por nós.”
O Chefe aproveitou a concentração da Vice para sutilmente tirar os sapatos e coçar os pés. Aquela alergia era ruim o suficiente para causar uma boa semana de desconforto, mas nada mais. Se seus inimigos soubessem, entretanto, seria ruim. Nenhum bom chefe já trabalhara nas plantações. Se seus subordinados soubessem de sua origem humilde... Até mesmo a Vice tinha sangue melhor que o dele; se ela quisesse, seria uma Chefe. Pensando nisso, percebeu que talvez não fosse sábio coçar os pés na presença dela, mesmo dirigindo. Mas confiava na Vice. Ela fazia seu trabalho muito bem.
“Escute...”--Começou a Vice, olhos colados na pista. Já passavam pela cidade--”Com o Jack Nariz morto, a plantação vai...”
“Não falemos nisso.”--Disse o Chefe. Sucessão era um assunto complicado. Nunca deixava seus subordinados saberem quando ele tinha estima especial por eles, mas deixava-os sabendo que apreciava trabalho bem feito. Um capanga baixo podia ser promovido rapidamente e sem aviso, não havia uma sucessão clara; ou pelo menos não era para ter. O Chefe fazia isso para evitar inveja e problemas. Problemas como aquele.
“Não falemos nisso.”--Disse o Chefe. Sucessão era um assunto complicado. Nunca deixava seus subordinados saberem quando ele tinha estima especial por eles, mas deixava-os sabendo que apreciava trabalho bem feito. Um capanga baixo podia ser promovido rapidamente e sem aviso, não havia uma sucessão clara; ou pelo menos não era para ter. O Chefe fazia isso para evitar inveja e problemas. Problemas como aquele.
Passaram a viagem de carro em silêncio. Dia qualquer, apesar do homem morto; carregamento vindo pelas docas, jantar diplomático depois, um charuto, uma bebida, papéis e uma boa noite de sono. Não planejara o homem morto, mas, bem, ossos do ofício. Já não sentia nenhum prazer ou desprazer.
Chegaram às docas cedo, a lua ainda baixa no céu. Os trabalhadores viraram os olhos quando os carros negros chegaram, cruzando pela sombra até o armazém distante. O Chefe deixou os seus capangas entrarem primeiro.
“Chefe!”--Disse James, prancheta na mão, ao ver os homens entrando. Havia um ou outro homem com ele, cuidando das caixas, examinando o conteúdo--”Tudo em ordem aqui. Veio olhar o carregamento?”
“Como sempre”--O Chefe respondeu àquele sorriso com sua carranca usual--”As coisas importantes eu vejo pessoalmente.” Como aquela.
“Como sempre”--O Chefe respondeu àquele sorriso com sua carranca usual--”As coisas importantes eu vejo pessoalmente.” Como aquela.
O carregamento realmente estava em ordem, como Steve insistia em dizer. Todas as caixas, qualidade comprovada, sem problemas com alfândega ou a lei. Inspecionaria cada caixa, mas o negócio crescera e agora elas eram numerosas demais. Apesar do crescentemente entediante e repetitivo monólogo, James fizera um bom trabalho.
“Muito bom, James”--Disse o Chefe, e sentiu a palpável excitação e alívio no peito de James--”Mas agora tire os sapatos.”
Todos os rostos se viraram. James parou de respirar.
“Como... Como é?”
“Tire os sapatos.”
O falatório já era prova suficiente, junto com as outras indicações, mas aquilo tinha que ser visto. Seus subordinados precisavam saber que só agia com certezas.
“Tire os sapatos.”
O falatório já era prova suficiente, junto com as outras indicações, mas aquilo tinha que ser visto. Seus subordinados precisavam saber que só agia com certezas.
“M...Mas chefe, e-eu não...”
“Tirem os sapatos deles, rapazes”--Fez um mínimo aceno, e logo os capangas cercaram James, tirando-o do chão e removendo rudemente seus calçados, ignorando profissionalmente os gritos e o espernear.
“Tirem os sapatos deles, rapazes”--Fez um mínimo aceno, e logo os capangas cercaram James, tirando-o do chão e removendo rudemente seus calçados, ignorando profissionalmente os gritos e o espernear.
Pés vermelhos e inchados, apesar da quantidade generosa de alguma pomada.
“Chefe, eu posso explicar, eu...”
“Eu sei que pode. Não deixo de admirar sua competência e sua obstinação, mas se eu não fizer isso meus subordinados vão começar a se matar. Você entende; é um homem esperto.”Mas podia ter atirado na cabeça. Só você não atira na cabeça; como você queria que o seu chefe não soubesse?
James gritou mais um pouco, mas o Chefe já estava distante. Os pés coçavam horrores. Não conseguiria andar mais sem mancar.
“Não se preocupe. Concreto trata bem os pés”--Disse o Chefe, acenando para dois capangas que não estavam segurando James--”Tragam o cimento e um balde de ferro. Os peixes destas docas andam solitários, e vimos como o James gosta de conversar.”
Nenhum dos trabalhadores das docas ouviria os gritos, ele se certificou disso, mancou até o canto e terminou o charuto, o mesmo de antes, olhando para cima e contando os calos nas mãos. Tão antigos.
“Feito. Tudo certo”--A Vice apareceu ao seu lado, uma sombra--”Agora você tem aquele jantar.”
“Certo. O de sempre.”
“Tem certeza que quer ir?”--Disse a Vice. O Chefe arregalou sutilmente os olhos; aquela ousadia não era de seu feitio--”Você parece cansado. Olhando pelos pés, morto.”
Encararam-se longamente. A Vice era uma mulher esperta. Nunca tirava um olho do Chefe; nem mesmo dirigindo. Ensinara a menina bem demais.
“Hoje eu vou. Mas só hoje”--Ele jogou o resto do charuto fora--”Acho que é uma boa hora para uma aposentadoria.”
- Extraneus
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