domingo, 25 de agosto de 2013

Jornada Lisérgico-Onírica ao Horizonte de Lugar Nenhum

– Estrela-do-mar. Haha. Consegui. Está aqui. Estrela-do-mar. Satisfeito, Cássio?
– Não valeu. Você olhou a resposta atrás.
– Não olhei não. Só sou mais esperto que você nesse negócio de caça-palavras.
– Mas é claro, né? Afinal de contas você existe…
– Não fala assim. Eu não quero lembrar disso…
– Você pode não querer lembrar, mas eles vão te fazer lembrar.
– Mas…
– Parece que a sua mãe tá vindo.
A porta abre devagar.
– Você tava falando com quem?
– Com ninguém, mãe. Tô sozinho, não tá vendo?
– Sei… E cê tava fazendo o quê?
– Tava cantando, acho. E fazendo caça-palavra. O doutor disse que era pr’eu fazer. Lembra?
– Mas por que que tá tudo escuro aqui? Assim vai forçar a vista e ficar com dor de cabeça.
– Tá bom assim, mãe. Tô bem.
– Cê não acha que é melhor dar uma saída, ir ver um amigo?
– Como que eu vou dar uma saída? Tá a maior chuvarada lá fora…
– Então vai lá embaixo ver uma televisão, sei lá. Sai desse quarto um pouco.
– Vou ver o que que eu vou fazer…
– Tá certo.
A mãe sai. Deixa a porta aberta. Ele levanta desanimado e a fecha.
– Viu, Cássio? Minha mãe acha que eu sou doido. Tem medo de eu fazer “uma besteira”. A culpa é daquele filha-da-puta do doutor Silvano que ficou botando merda na cabeça dela.
– Você não acha ela tem motivos pra se preocupar?
– Do que que cê tá falando, cara? Eu tô bem, não tô? Tô melhor aqui do que naquele hospital.
– Tá, tudo bem. Mas você ainda tem que concordar comigo que cê tá falando sozinho.
– Para com isso, porra! Que que você quer? Que eu pare de falar com você? Eu paro, caralho! Mas ai eu vou falar com quem? Com ela? Que que eu tenho pra falar com ela? Nada. Ai é que eu vou ficar maluco de vez…
– Calma, cara. Não precisa ficar nervoso. Então a gente tem que achar um jeito de resolver essa situação. Por que ficar desse jeito não dá. Cê passa o dia inteiro aqui. Só sai pra cagar.
– Mas se eu saio daqui vou pra onde? Pr’aquela imundície lá embaixo? Não, obrigado. Se fosse pra sair daqui só se fosse pra outro lugar.
– Como assim? Tipo ir embora, fugir?
– É, bem isso mesmo. Na real era isso que eu devia fazer. É isso que eu vou fazer.
De um salto foi até o armário e começou a jogar suas roupas na cama.
– Cê não pode tá falando sério. Já pensou como é que ia ser sua vida? Vai fazer o que pra comer, conseguir dinheiro?
– Isso é fácil, posso arranjar um bico qualquer só pra me manter. Melhor do que ficar aqui com todo mundo achando que eu vou me atirar pela janela a qualquer hora.
– Porra, cara. Eles têm motivo pra achar isso. Olha só como é que cê tá. Num come direito, fica falando sozinho pelos cantos, e quando alguém fala contigo não responde mais que o necessário… Eles ficam assustados. Agora, do nada, resolveu fugir. Eu acho que cê tem que parar com isso.
– Calaboca, bicho chato do caralho! Quem sabe se eu preciso de ajuda sou eu. E eu tô dizendo que eu não preciso deles. Olha: eu vou pegar essa bolsa e vou sair dessa casa. Se você quiser vir tudo bem, se não, foda-se, caralho!
Com força abriu a porta. A bolsa pendurada no ombro.
– Cê acha que vai sair carregando uma mala e ela não vai falar nada?
– Ela deve tá na cozinha agora. É só não fazer barulho.
– E se ela te ver?
– Ela não vai me ver.
– E se ela ver?
– Ela não vai me ver! Vem, você vem ou não?
Em silêncio desceu a escada. Em silêncio cruzou a sala. Em silêncio abriu a porta. Chuva lá fora. Muita chuva. Nunca vira tanta chuva. Eram pingos grossos explodindo contra o asfalto. Mas não havia mais o asfalto. Era como um rio que corria por entre as casas. Uma corredeira negra pincelada pela fraca luz dos postes. Só agora percebera que era noite. Madrugada talvez. E chovia como nunca.
Foi quando começou a sentir que seus pés estavam encharcados. Olhou para baixo. A água chegara até a porta. Mas não era simplesmente água molhada. Era uma água forte, irresistível. Puxava seus pés com a força de um turbilhão. Deixou-se levar. Arrastado pela água como uma folha de papel. Quarteirões, quarteirões. Quilômetros e quilômetros. Mas ai percebeu que estava molhado. Chuva em cima, rua embaixo. E o frio. Tentou parar mas não conseguia. A força da água aumentava e aumentava. E quanto mais ele tentasse ir contra a correnteza mais forte ela ficava. A chuva em cima, a rua embaixo, a lágrima em si.
E então a correnteza parou. E a chuva foi diminuindo. Estava parado, boiando no meio do nada. Uma claridade oscilante vinha de algum lugar.
– Tem alguém vivo ai!?
Foi aquela luz repentina que o fez ver. Não estava sozinho. Boiava no meio de uma multidão de cadáveres congelados, enrolados em coletes salva-vidas.
– Tem alguém vivo ai!?
– Estão todos mortos, senhor.
– Continuem checando, continuem verificando!
A claridade e as vozes vinham de um barquinho branco que atravessava o oceano de corpos. O homem que gritava na proa sacudia um sinalizador acima da cabeça.
– Tem alguém vivo ai!?
E foi molhado, com frio e com medo que ele conseguiu fazer força e assoprar um apito. Apitou. Apitou e não se lembrou de mais nada.
A última coisa que viu foi o rosto do homem com o sinalizador, que na verdade era igual ao rosto de sua mãe.

Luís Fintelman. Florianópolis, vinte e cinco de agosto de dois mil e treze

Leia meus outros contos na Gazeta do Fintelman.

Um comentário:

  1. acho que os dialogos, não sei... mas me pareceram um pouco utilitários. faltou um pouco do mundo que estaria fora da cena saca? um pouco de cotidiano.
    mas o desenvolver, gostei de como estruturou o texto.
    eu saquei a intenção bem de boa, ele ficou bem simples neste quesito, que é um pouco positivo.

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