terça-feira, 12 de maio de 2015

Reação

“Porra. Caralho. Merda. Buceta”
As palavras foram lavadas pela chuva, da mesma forma que foi o exterior do carro, as ruas, e até onde a vista alcançava. O celular cantava alegremente num canto, em pé num espaço que originalmente servia como apoio de copo, mas agora era usado como amplificador. Funcionava bem na maioria dos casos, mas, com a tempestade, só se ouvia o ronco rouco do motor, os pneus lutando contra a água e o asfalto, e o sussurro que era o xingar do jovem.
A tempestade viera sem aviso. Ou pelo menos parecia; o céu já era escuro há horas, de forma que o véu negro podia muito bem ter ocultado as nuvens. Água caía de uma forma quase cômica, ridícula, tão forte e pesada que tornava o interior do carro em uma batedeira insuportável. Nem a luz conseguia atravessar toda a chuva; olhar para a estrada era tão eficiente quanto tentar olhar através de uma cachoeira, e os faróis não ajudavam. Os limpadores lutavam vigorosamente uma batalha há muito perdida.
Pelo menos era para ser um bairro calmo. Um subúrbio denso, enormes ilhas de casas grandes se extendendo pelas ruas bem pavimentadas. Contornava o rio, pelo que ele se lembrava. Ele não costumava passar por ali, tanto por ser um desvio considerável quanto pela má sinalização das ruas, mas fazer o caminho usual significava passar na frente de uma certa casa. Quando veio a chuva ele quase se arrependeu de estar naquele lugar maldito, onde tinha que prestar atenção nas curvas. Quase.
“Maldita vagabunda. Até agora me fode”–Ele disse, vã tentativa de superar o espancamento de seu carro sofria.
O carro corria rápido demais na chuva, mas o motorista era quase experiente nesses casos. A madrugada não era mais mistério para ele, nem a chuva, mas as duas juntas já eram outra história. As placas das ruas já eram pequenas, já eram esparsas, e com toda aquela água no caminho era uma tarefa quase impossível lê-las à distância. Abrir a janela provavelmente ajudava, mas só de pensar em fazê-lo o jovem já imaginava a agonia do afogamento. Seguiu com sua astúcia e coragem. Já tinha feito aquela rota algumas vezes, conhecia o esquema. Sentiu um estranho desbalanceamento no carro, mas deixou o pensamento enterrado e focou-se no caminho. Uma curva à esquerda depois da árvore grande, uma á direita depois da casa com a torre, um carro desgovernado no meio da rua…
Não não, só alguma luz estranha. Nenhum carro conseguiria dirigir daquela forma. Não tão inclinado, nem tão rápido.
A luz era um borrão disforme em sua direção, crescendo como um câncer amarelo no retrovisor embaçado. O motorista inclinou-se para a frente, acelerando um pouco e ouvindo o ronco do motor suplantar a chuva por um instante. Concentrou-se tanto que esqueceu de passar a marcha. Uma passada do limpador e a imagem tornou-se nítida por um segundo; uma pintura estática, logo destruída pela água.
O carro voava na direção dele.
“PUTAQUEOSPARIU”
Girou o volante e arrancou um poste do gramado próximo. O carro deslizou pelo gramado bem cuidado de uma casa grande, girando, criando profundas e grotescas cicatrizes na grama. Inclinou o volante todo ao lado oposto da curva, e viu o carro endireitar-se. Atrás, o poste caía ruidosamente no capô do outro carro, quase colado. Aceleraram.
Não era uma manobra factível; uma hora o carro estava indo na direção dele, noutra vinha de trás, e vinha rápido. Tentou olhar pelo retrovisor, entender a situação, mas tudo que via eram dois borrões de luz.
O lógico foi pro espaço. As casas também, todo o caminho. Enfiou o pé tão fundo no acelerador que seus dedos doeram. As luzes dos postes passavam rápido aos seus lados, o jovem bufando, o coração explodindo no peito. A adrenalina corria pelas suas veias como o grito de cem soldados, forçando-o a continuar na pista, a acertar o deslizamento na curva, a reduzir a marcha no momento certo… Passou por uma lombada e o carro saltou; talvez, sem a chuva, teria ouvido algum barulho horrível na lataria. Foda-se.
     Cruzou uma rua e viu as luzes novamente; desta vez na frente dele. O outro carro lutava contra a chuva vigorosamente, correndo na direção dele de novo, os limpadores rápidos nas poucas horas que o motorista via alguma coisa.  Desviou para o lado no último segundo, e ouviu alguma coisa metálica batendo no capô.
Não viu quão rápido estava. Correu, correu, correu, correu. Fazia curvas quando podia. Não olhava as horas, nem a quilometragem, nem nada; tinha que usar tudo de si para simplesmente sobreviver, com toda aquela chuva…
Que acalmava. Agora as gotas eram normais de um inverno qualquer, e via a pista toda à frente, estendendo-se num vazio estéril e molhado. Atrás… nada. Reduziu a velocidade lentamente, cuidadosamente, pronto para arrancar a qualquer sinal de luz… E a escuridão continuou lá, sorrindo ironicamente. Reduziu até o normal transitável. Olhou o painel; duas e trinta e sete, o dois grande.
Os números eram pra ser do mesmo tamanho, não? O dois era realmente maior, como se o plástico à frente do mostrador digital tivesse espessura diferente, fosse uma lupa… Ou como se houvesse uma gota d’água. Passou a mão e sentiu seco. A gota estava por dentro, mas só por mais um segundo; deslizou para dentro e desapareceu, junto com a vida do painel.
“Filha da puta… Bom, pelo menos…”
O celular também estava morto. A música realmente drenava a bateria. Tentou ligá-lo mais algumas vezes, as mãos ainda trêmulas de alguns segundos antes, mas tudo que conseguiu foi o aviso de “coloque-me na tomada!”. Jogou o aparelho no banco, com raiva, e continuou dirigindo.
Por onde, percebeu, não sabia.
As casas eram todas diferentes. Grandes mansões acinzentadas, sombrias, com soleiras enormes de pedra e madeira. Casas modernas, quadradas, com cachoeiras artificiais e um branco perturbador. A rua seguia para a frente, e de tantos em tantos metros havia um cruzamento de quatro lados. Cruzou uma vez e se deu com outro cruzamento igual poucos metros depois. Malditos subúrbios.
     Nem sinal do outro carro, mas era fácil se perder naquele labirinto. Deve tê-lo despistado em alguma das muitas curvas que fez. Achou que viu um carro na distância uma vez, e alguma sombra próxima, mas quando a imagem estava ficando um pouco mais clara ela disparou pela noite. Depois disso não viu alma viva por um longo tempo.
As casas eram todas grandes, o asfalto era todo igual. A chuva acalmara mas não tanto, de forma que nem parando ao lado das placas conseguia ler muito. Talvez devesse sair e pedir informação.
Bobagem. Quem faz isso? Só conseguiria assustar as pessoas de alguma casa. Quem sabe atirassem nele. Se pelo menos a bosta do celular tivesse uma bateria melhor…
Fez uma curva totalmente arbitrária e sentiu o desbalanceamento do carro mais uma vez. Não tinha mais a água para culpar; deixou a direção reta e sentiu um apertar no reto. O pneu estava furado.
“Merdacaralho”
Foi reduzindo a velocidade lentamente, encostando, olhando em todos os espelhos a todo o momento. Deixou o farol ligado enquanto saiu, protegendo-se da chuva com a jaqueta. O pneu dianteiro esquerdo já vira dias melhores. Em poucos minutos estaria completamente vazio.
“O que eu fiz hoje?”–Ele disse, virando-se para pegar o estepe.
Havia uma luz na distância. Dois faróis. Estava longe, mas ele reconheceu.
O carro; o perseguidor. Acelerava.
Correu para dentro e enfiou o pé o mais fundo que podia. Foda-se que tinha que dirigir com a direção torta; era o que tinha. A chuva acalmou, mas o asfalto se foi; agora tudo o que tinha era uma estrada elameada, de barro, que dava um aspecto rubro e às poças recentes. A luz atrás sumiu, mas por quanto tempo? Como sempre encontrava-o?
As casas cessaram. Havia, agora, só um campo gramado aos lados, e umas árvores na distância. O pneu já deixava a direção difícil, e o painel fazia sons esquisitos. Qualquer manobra era perigosa, como a curva súbita que havia à frente. Contornava um rio. Os faróis baixos já não ajudavam tanto naquele espaço, sem poste algum. Meio a contragosto, ainda com a mão tremendo, ligou o farol alto.
Havia um homem no meio da rua.
O volante gritou na mão do motorista. Sentiu a batida na lateral do carro, e depois na frente, onde havia um outro carro estacionado. A chuva caía de novo mais forte.
“ai não meu deus ai não”
Saiu do carro batendo os dentes de tremedeira. Ouviu o carro que bateu, lá atrás, escorregar pelo barranco que dava ao rio e cair nele. O homem estava deitado no chão, segurando-se numa árvore, mais vermelho do que branco.
“Vo… Você tá bem?”
“Des…”
“O quê?”
Alguma luz súbita veio de trás e iluminou tudo. Reconheceu o homem deitado no chão, e ouviu suas últimas palavras antes de ele escorregar barranco abaixo e desaparecer no rio. Algo em seu cérebro, alguma trava animalesca que nunca devia ser ativada, algo estalou. Os músculos não obedeciam. A boca era grande e desajeitada. Algo acertou o motorista por trás.
Não sentia as pernas. Sentia o áspero da casca na mão, ouvia a batida do carro, algo deslizando para dentro do rio, e passos. Falaram com ele.
Tentou falar, mas a boca se engasgou com a língua.
Veio uma luz por trás.
“Desvia… Desvia de mim.”

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